O mistério da palavra

Porque será que uma palavra aflora
correspondendo logo ao nosso apelo,
com a medida justa, o justo emprego,
enquanto noutras vezes se demora
(rimmel, bâton, um jeito no cabelo…)
e chega em voo cego de morcego?


Porque será que uma palavra quase
vai buscar outra dentre a multidão,
e esta segunda, uma terceira e quarta,
e assim nasce de súbito, uma frase,
um belo verso, a quadra ou a canção,
a sentença de morte, a tua carta?


Porque será que uma palavra, impávida,
resiste aos séculos e fica jovem,
ou morre (cancro, enfarte, dor reumática),
enquanto outra, novinha, surge grávida,
e aos nove meses os filhinhos chovem
que é um louvar a Deus e à gramática?


Porque será que a rima atrai a rima,
e a rima nova é como o vinho novo
que salta e espuma e baila na garganta?
E outra rima! Outras rimas! A vindima
das palavras não pára… E, no renovo,
o poema é estrela que alumia e canta!


Porquê este mistério, Poesia?
És tal e qual a electricidade:
existe mas nem sempre a gente a vê.
Porque foges um ano e mais um dia
e voltas, alta noite, claridade?
Porquê? Porque será? Porquê? Porquê?

A raposa e a cegonha

O sr. Pombo, o carteiro,
trouxe um bilhete à Cegonha,
em folha de pessegueiro,
que ela soletrou, risonha:


«Dona Raposa, a Vossência,
envia muito saudar,
aguardando a comparência
de Vossência no jantar


que às Tantas do dia Tal
do corrente, se efectua
no Retiro do Pardal,
na rua da Catatua.


Não diga nada ao correio
e creia-me ao seu dispor.
Traje: simples, de passeio
R.S.F.F. (Responda, se faz favor).»


É claro: à hora marcada,
no dia Tal, no bilhete,
Dona Cegonha, apressada
lá seguiu para o banquete.


Mas foi uma decepção,
pois a Raposa, matreira,
fez servir a refeição
numa pedra da ribeira...


E, enquanto a pobre Cegonha
achava o caso bicudo,
a Raposa, sem vergonha,
tratava de comer tudo!


Mas a Cegonha, à saída,
despediu-se em tom amigo:
- Gostei muito da comida!
Almoce amanhã comigo!


De manhãzinha, a Raposa,
sempre cheia de apetite,
não quis saber doutra coisa
senão daquele convite.


- Sim, senhora! Bela mesa! -
gritou logo, satisfeita –
Cheira que é uma beleza!
Há-de me dar a receita...


- Bem digo eu, afinal,
e a colegas das melhores,
que dona de casa igual
não há nestes arredores!


Pôs então o guardanapo,
pensando, de olhos em alvo,
que havia de encher o papo
graças a mais um papalvo...


Já a Cegonha servia,
prazenteira, o seu almoço,
numa bilha muito esguia
e funda que nem um poço.


Só um bico, desta vez,
podia chegar ao fundo...
Foi o que a Cegonha fez:
rapou tudo num segundo.


E fula, de olhar em brasa,
a Raposa, como louca,
teve de voltar a casa,
fazendo cruzes na boca.


Vingança é coisa mesquinha!
Mas na vida quem faz mal
paga às vezes a continha
com juros e capital...

Quando Eu Era Pequenino...

Quando eu era pequenino,
gostava de ouvir contar
histórias de princesinhas
encantadas ao luar.


Havia então lá em casa
uma criada velhinha,
a Sérgia contava histórias
- e que graça que ela tinha!


Lendas de reis e de fadas,
inda me incheis a lembrança!
Que saudades de vós tenho,
ó meus contos de criança!


“Era uma vez...” As histórias
começavam sempre assim;
e eu, então, sem me mexer,
ouvia-as até ao fim.


Lembro-me ainda tão bem!
Os irmãos à minha beira,
calados! E a boa Sérgia
contava desta maneira:


“Era uma vez...” E depois,
olhos fitos nos seus lábios,
ouvia contos sem conta
de gigantes e de sábios”.


“Era uma vez...” E, por fim,
a voz da Sérgia parava...
E assim como eu te contei
era como ela contava.


Ai! que saudade, que pena,
que nos meus olhos tu vês!
Eu sentava-me e ela, então,
começava: - “Era uma vez...”